FUTURO INCERTO

Ressentimentos e ansiedades do povo israelense e crise da democracia - Por David Diesendruck

Estamos presenciando, provavelmente, a maior demonstração de resiliência na defesa da democracia por uma sociedade civil

Benjamin Netanyahu.Créditos: Reprodução/Facebook
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Nos últimos sete meses Israel tem vivido uma turbulência inédita em sua história. Jamais o país esteve tão dividido. Muitas análises e comentários têm sido publicados e novas reflexões podem ajudar a entender e qualificar o debate.

Alguns pontos relevantes são fundamentais para melhor compreensão do que está ocorrendo: Israel não possui uma constituição e seu regime, na prática, não possui três poderes; a maioria dos israelenses é a favor de uma reforma judicial; a resistência da sua sociedade civil.

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Por motivos históricos, que passam pela diversidade e multiculturalidade da população, Israel jamais conseguiu redigir sua constituição. Várias tentativas sem sucesso foram realizadas desde sua independência, 75 anos atrás. Portanto, as decisões são tomadas pelo Parlamento, a Knesset, com o aval, ou não, da Suprema Corte. Como o regime parlamentarista israelense estabelece que a maioria simples forma o governo, o Executivo e o Legislativo acabam sendo o mesmo. Ou seja, o único freio e contrapeso existente é a Suprema Corte.

Na prática, é um Parlamento, que através de uma maioria simples de 61 votos pode mudar o “modus operandi” do país. Assim, é possível, por exemplo, aprovar mais recursos a escolas ultraortodoxas que não estudam matérias profissionalizantes e cujos alunos não servem o exército, mudança na lei que define a identidade judaica, a anexação da Cisjordânia ou a discriminação das minorias árabes, drusas ou LGBTQI+. Daí a enorme preocupação de parte relevante da população israelense.

Mas, qual seria o contexto que levou a esta divisão? O pensador Micah Goodman diz ser uma combinação de ressentimentos passados com ansiedade do futuro. De um lado, temos a população oriunda de nações do Oriente Médio, que imigraram para o país logo após a independência (depois da expulsão de seus países originários). Essa imigração foi recebida com preconceito pelos pioneiros sionistas oriundos da Europa. Sua cultura, tradições e costumes sofreram uma tentativa de apagamento que até hoje permanece na memória deste grupo.

Os nacionalistas da extrema direita ainda se recordam da remoção dos assentamentos na Faixa de Gaza e o descaso com sua recolocação em território israelense. Estes são os ressentidos que olham para o passado e buscam reparação e reconhecimento. Do outro lado, temos o grupo oriundo das famílias que fundaram o país. Suas ideias eram socialistas e de construção de uma país secular e exemplar com relação aos direitos humanos e à justiça social. Estes são os ansiosos com relação ao futuro de Israel que se apresenta por esta coalizão. Podemos ainda acrescentar o setor ultraortodoxo, que cresceu e busca manter seus poderes e privilégios.

Para os apoiadores dessa reforma, o Supremo não representa a vontade da maioria da população e seus mecanismos para seleção de novos membros garantem a perpetuidade do perfil do tribunal. A composição da sociedade civil israelense não é a mesma da época de sua constituição. Entretanto, estes mecanismos impedem que a corte seja renovada e se torne mais representativa da população que hoje compõe a maioria dos israelenses. Para esse grupo, sem a reforma, Israel estaria deixando de ser uma democracia.

A compreensão desse pano de fundo nos ajuda a entender o motivo dessa coalizão, que une partidos que reforçam estes ressentimentos, romper com a frágil convivência existente entre estes grupos antagônicos em suas visões de mundo. Enquanto predominava um pacto social, onde cada lado, de certa maneira, respeitava o outro, a vida seguia. Mas isso foi por água abaixo com a ascensão da extrema direita que, com o apoio dos ultraortodoxos, quer impor seus princípios e valores.

Essa ameaça mobilizou diversos setores da sociedade israelense, que durante anos mantinham-se à distância da política. Viviam seu estilo de vida e apesar da revolta com os abusos da ocupação na Cisjordânia, da violência nas cidades árabes dentro de Israel, do monopólio dos ortodoxos sobre a religião e sua isenção do exército aceitavam essa convivência desigual. Agora, tudo mudou.

Já são 32 semanas ininterruptas de manifestações reunindo centenas de milhares semanalmente nas ruas do país. Reservistas da Força Aérea israelense, a elite militar de Israel, ameaçam não comparecer a seus treinamentos. Um fato alarmante para um país com uma vizinhança hostil e atenta a qualquer sinal de fraqueza de seu exército.

Estamos presenciando, provavelmente, a maior demonstração de resiliência na defesa da democracia por uma sociedade civil. Um exemplo para demais países que sofrem da mesma ameaça.

O fato curioso (e triste) é que as pesquisas indicam que a maioria dos israelenses concorda, pelo contexto citado acima, com a necessidade de uma reforma judicial. Já foram várias as tentativas. Ou seja, a questão não é a reforma, mas sim o processo como ela está sendo conduzida goela abaixo. Não há diálogo entre as partes. Os partidos da coalizão não renunciam a suas demandas e ameaçam constantemente abandoná-la caso não sejam atendidos.

Por que então este processo sem debate e às pressas? A resposta chama-se Benjamin Netanyahu, o atual primeiro-ministro de Israel, acusado de três casos de corrupção e que busca, a qualquer custo, escapar de seu julgamento. Alguns analistas dizem que propostas oferecendo imunidade caso ele renuncie já foram oferecidas, mas Bibi quer, além da liberdade, vingar-se dos juízes do Supremo. Uma situação trágica para um pequeno país que não pode permitir-se a tamanho risco, econômico, diplomático e militar.

A situação em Israel não é única e tampouco exclusiva. A ascensão de governos extremistas e populistas que despertam e acirram ressentimentos e ansiedades infelizmente tem sido frequente em vários países, em todos os continentes. Entretanto, a resistência e resiliência de seus manifestantes são notáveis e precisam contar com todo o apoio daqueles que acreditam na democracia.

*David Diesendruck é diretor do Instituto Brasil-Israel.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.