O meu, o seu, o nosso...

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Todo mundo parece que morre de medo de qualquer coisa que não seja o capitalismo porque, fora dele, “não dá para cada um ter as suas coisas”.

Eu acho que não é bem assim.

Por exemplo: você tem uma furadeira? Se sim, quantas vezes por ano você usa a sua furadeira? E quanto esse trambolho custou? Quanto pesa? Quanto espaço ela ocupa?

A menos que você trabalhe com ela ou tenha um hobby que envolva seu uso, o fato é que ela provavelmente quase nunca é usada. Mas você não pode simplesmente se livrar dela. Se o fizesse não a teria para os raros (mas existentes) momentos em que ela é necessária.

E se, digamos, no seu prédio ou na sua vizinhança, houvesse uma furadeira disponível para quando alguém precisasse dela, incluindo você? Não seria melhor?

Daí você me diz: isso não funciona, porque as pessoas não teriam cuidado com o equipamento, ele quebraria, não dariam manutenção... e eu te respondo: mas imagina que, ao invés de terem a mentalidade de que “dane-se, não é meu mesmo”, as pessoas tivessem a mentalidade de que “isto não só é meu como é de outras pessoas também”. Tivessem a mentalidade de que não é só o que é só nosso que merece cuidado.

Ter é tão importante na nossa sociedade atual, é tão almejado e desejado, que grande parte das nossas leis e do nosso governo existe para tratar da disputa de patrimônio, da briga por coisas, por valores. Aliás, na nossa obsessão por ter, transformamos também pessoas em coisas, em objetos de consumo, e as disputamos como se o fossem. Muito da violência de gênero e da violência contra a criança decorre dessa objetificação.

Quando a gente fala de pôr fim à propriedade privada, todo mundo cai na neurose do parquinho: daquele dia horrível em que a tia da escolinha ou a mamãe ou quem quer que seja te forçou a dividir o brinquedo mesmo contra a sua vontade. Empatizo. Acho uma tremenda sacanagem.

Mas não é disso que a gente está falando. A gente não está falando de tirar de você algo que de que você precisa, que é útil para você, que você está usando. Ou de FORÇAR você a fazer o que quer que seja. Também acho que não vale a pena a gente lutar para construir um mundo novo se for para ser assim.

A gente está falando que o conceito de “meu” e “seu”, etc., com que a gente vive, é todo inventado. É baseado não na nossa necessidade das coisas que são minhas e suas, mas numa ideia de território meu e seu, numa ideia de segurança. Porque fomos ensinados a ver as nossas coisas como extensões de nós mesmos, como prova de que existimos, de que “somos alguém”, de que somos dignos de respeito. Porque temos sempre a sensação de que ter é poder e que quem não tem poder deve temer quem o tem.

E estamos muitas vezes tão envolvidos nessa competição pelo ter/poder que sequer percebemos como isso não faz sentido, como isso cansa. Porque cansa, não é? Ficar o tempo todo cercando as “suas” coisas? Com medo de que alguém te faça mal para tomar de você as “suas” coisas? Devotando a sua vida a buscar coisas para serem “suas”? Quanto mais coisas temos, de mais coisas precisamos para cuidar das que já temos.

E daí estamos tão ocupados cuidando das nossas coisas particulares e privadas que começamos a não nos importar com as coisas que não são só nossas. Como se aquilo que não fosse nosso e só nosso (mesmo aquilo que também é nosso, como as coisas “públicas”) não fosse digno de cuidado.

É difícil imaginar uma coisa diferente depois de crescer nesse sistema. Mas eu te pergunto: sem a escassez, sem esse medo de ficar sem, de precisar e não ter... será que permaneceria a necessidade de ter e manter e acumular? Se você não precisasse sempre “ter” algo que não está usando para ter certeza de que isso estaria disponível para você quando você precisasse dele, você ainda assim sentiria essa necessidade? Se todos nós tivéssemos à nossa disposição tudo aquilo que queremos, será que ter ainda seria medida de importância do indivíduo?

Voltemos ao parquinho. Imagine uma criança cercada de brinquedos que não são dela, mas de todas as crianças, de todas as pessoas, brinquedos que ficam ali no parque, à disposição de quem queira brincar com eles. Ela pega um. Vem outra criança e pede para pegá-lo. Ela o está usando, cede apenas se quiser. Então a outra criança pega outro brinquedo, que não está em uso. Porque nenhuma das duas tem como brincar com os dois ao mesmo tempo. Então, enquanto uma brinca com um, a outra brinca com o outro. Se os brinquedos não serão quebrados, nem sumirão dali, não há necessidade de uma esconder da outra os brinquedos que não estão sendo utilizados.

Claro que, quando se trata de crianças de dois anos, as coisas podem não ser tão simples, já que eles estão justamente num momento de definir suas pessoas, seus territórios pessoais, etc. Mas eu imagino que nós, adultos, já estejamos mesmo hoje melhor equipados para lidar com esse tipo de situação.

Imagine que a diferença entre o que é comprado e o que é de graça não existisse, porque tudo estaria disponível de acordo com as necessidades de cada um. E que quando você não está usando, não precisa ficar guardando, preocupado com alguém pegar aquilo, se alguém vai tirá-lo de você. Porque você sabe que, de qualquer forma, você não vai ficar sem. E com o bônus de poder compartilhar o cuidado e manutenção dessa coisa com outras pessoas.

Num cenário como esse, acredito inclusive que a maior parte das pessoas, ao invés de esconder as coisas, as ofereceria por livre e espontânea vontade. Porque começa a existir a empatia, o colocar-se no lugar do outro, saber como é bom poder fazer uso de algo quando se precisa daquilo.

Imagine que, mais do que ter alguma coisa para chamar de sua, você tenha todas as coisas de que precise, sem que nada tenha que ser só seu para estar disponível para você, para você ter suas necessidades satisfeitas ou mesmo para você ser considerado alguém digno de respeito.

Não parece legal? Não dá vontade de experimentar?