DIREITOS HUMANOS

Privatização de presídios: por que se opor?

Mais de 86 entidades se manifestaram contra projetos de gestão privada de presídios por violações de direitos humanos; "Não deu certo em lugar nenhum e é inaceitável", diz Silvio Almeida

Presídio lotado.Imagem de arquivoCréditos: Agência Brasil
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A privatização de presídios é um dos temas em que o Governo Lula mais tem recebido críticas de setores da esquerda e defensores de direitos humanos ao longo deste primeiro ano de mandato. E isso se deve por conta de uma nova normativa que facilita editais de cogestão ou Parceria Público Privada (PPP) para a construção e gestão de presídios pela iniciativa privada. Recentemente, o leilão do presídio de Erechim, no Rio Grande do Sul, recolocou o importante debate em evidência.

É verdade que o Decreto 8.874 de 2016, assinado em pleno Governo Temer, foi o que trouxe tal possibilidade à baila, ao regulamentar as condições para aprovação de investimentos privados em infraestrutura pública. Mas a normativa ainda não era atraente o suficiente, tanto que o próprio leilão do projeto do presídio de Erechim foi tentado em agosto de 2022, na reta final do Governo Bolsonaro, e não encontrou interessados.

Foi graças ao Decreto 11.498 assinado em abril de 2023 pelo presidente em exercício Geraldo Alckmin – Lula estava na China – que as condições para a privatização de presídios ficaram mais atraentes. Entre outras coisas, o novo decreto, que atualiza a norma anterior, prevê que assim como a educação e o saneamento básico, o sistema prisional é também considerado uma área de investimentos prioritários para o Governo Federal.

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Nesse sentido, o Decreto atualizado prevê isenções fiscais, autorizando a emissão das chamadas debêntures incentivadas, as ações que permitem às empresas buscar no mercado financeiro investimentos para seus empreendimentos - o que no caso se trata da construção e gestão de prisões. Incentivados pela União esses títulos oferecem benefícios fiscais.

Em termos tecnocráticos, de pura gestão, pode até fazer algum sentido esse incentivo. O problema é que a gestão pública não é apenas um mero processamento de números, ela também impacta no cotidiano da população. E o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, chegando a 833 mil pessoas presas segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública – um crescimento de 257% entre 2000 e 2022.

Para os grupos vinculados à defesa dos direitos humanos em todo o país existe um consenso: privatizar presídios induzirá ainda mais o encarceramento em massa, levando em consideração que as empresas são remuneradas por interno, além da óbvia previsão de que os serviços pertinentes à gestão penitenciária, como alimentação, higiene e outros, podem ser comprometidos por medidas de gestão internas. É nesse sentido que foi redigida uma nota técnica do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) enviada ao Governo Federal em setembro e assinada por outras 86 entidades de defesa dos direitos humanos.

“A opção do Governo Federal em privilegiar as iniciativas de privatização da gestão das punições, como será visto, traz a certeza de que, ao revés do discurso manifesto, haverá o aprofundamento das violações de direitos, trazendo consequências nefastas e manifestamente contrárias ao desenvolvimento social”, diz trecho da nota técnica, que pede a revogação do decreto.

Por que se opor?

Ao Conversa Criminal Podcast, o professor de direito de execução penal e advogado criminalista, José Flávio Ferrari, e a defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), Mariana Borghese Duarte, alertam para algumas contradições.

“Estamos falando da extensão do Estado para entes privados, e todos sabemos que empresas privadas têm como principal objetivo o lucro. Isso fica ainda mais claro com a possibilidade de se pedir mais valores no mercado de capitais e com a posterior prestação de contas do negócio para quem está investindo. Ou seja, precisam mostrar que o projeto é viável, mas como vão fazer isso?”, indaga Ferrari.

Duarte, por sua vez, dá um exemplo prático dessa mercantilização dos serviços penais: o das tornozeleiras eletrônicas. Segundo a defensora, após o advento das empresas que fazem a gestão desse serviço as tornozeleiras começaram a se multiplicar. Ela ainda alerta para o sucateamento das prisões públicas e para a possibilidade de que haja trabalho análogo à escravidão em prisões privadas, justamente na perseguição da lógica mercantil exposta acima. Segundo a defensora, países que já adoram o modelo privatizado está tentando reverter suas políticas.

“Temos um sucateamento do sistema prisional e isso não é por acaso. É utilizado como uma pretensa justificativa para a privatização. E se por um lado apontam uma pretensa redução de custos com a privatização, por outro, na prática, isso não significa que o Estado vai gastar menos, porque o preso vai custar mais caro. Nos EUA, por exemplo, está ocorrendo um processo de reversão dessa política”, explica a defensora.

Em entrevista ao The Intercept, outro defensor público, Bruno Shimizu, concorda e aprofunda o argumento de Duarte: "O governo está abrindo mão de arrecadação. Está tirando dinheiro de outras políticas públicas para entregar na mão dessas empresas. Com um ônus: o governo paga três vezes mais por cada preso custodiado em um presídio privado do que o valor gasto no sistema prisional público”, disse Shimizu, que também é diretor do IBCCRIM.

Além disso, os presídios privatizados não apresentaram, até aqui, soluções para os problemas já registrados nas gestões públicas penitenciárias. Como exemplo, entre 2017 e 2019 ocorreram dois massacres no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas. A unidade era administrada pela Umanizzare, que abandonou o “negócio” após os episódios.

A problemática de Erechim

No último dia 6 de outubro, o leilão do presídio de Erechim foi feito na Bolsa de Valores de São Paulo e a Soluções Serviços Terceirizados (SST) foi a ganhadora sem que tivesse encarado qualquer concorrente. Ali ficou decidido que a empresa construiria o presídio e faria sua gestão a um custo de R$ 233 diários por interno.

A unidade prevê um total de 1200 vagas e ficaria pronta em até 2 anos dispondo de R$ 150 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A concessão, por sua vez, vale por 30 anos e busca substituir o atual presídio de Erechim, que abriga 444 internos no centro da cidade. O valor total estimado do contrato está na casa dos R$ 2,5 bilhões.

Mas do lado de fora da B3, partidos políticos como o Psol e o Pstu e organizações de direitos humanos como a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas), a Frente Estadual pelo Desencarceramento (SP) e a Pastoral Carcerária do RS protestavam contra a entrega do presídio.

Os manifestantes lembravam a quem passasse e aos poucos meios de comunicação que cobriram o ato que a SST já foi punida, no Rio de Janeiro, por falta de higiene na distribuição de quentinhas a presos. De equipamentos quebrados, a carne recongelada e comida estragada, tudo o que viola normas básicas de higiene foi registrado em vistoria no local.

Cinco dias depois do leilão, a SST foi desclassificada pela Justiça gaúcha por não atender a um dos itens do edital. Mas se engana o leitor de que tenha sido pelas denúncias de falta de higiene no RJ. A empresa foi tirada da gestão do futuro presídio por não ter apresentado, conforme previa o edital, a carta de uma instituição financeira declarando que analisou os planos de negócio da empresa e que atestava sua viabilidade. E ainda pode recorrer.

Silvio Almeida prepara nota técnica

Duas semanas após o leilão do presídio de Erechim, em 20 de outubro, o ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, se pronunciou publicamente sobre o tema e prometeu a publicação de uma nota técnica do ministério. O documento ainda não saiu do papel, mas o ministro deu pistas do seu teor.

“Privatização de presídios não deu certo em lugar nenhum e é inaceitável. É inaceitável porque sabemos, cientificamente, que redunda em violações de direitos humanos e encarceramento em massa. Como ministro de Estado cabe me posicionar institucionalmente a respeito disso. Nesse sentido pedi que o Ministério elabore uma nota técnica para nortear as discussões sobre o tema”, disse o ministro à TV Brasil.

A primeira experiência

A primeira prisão privatizada do Brasil completou 10 anos em 2023. Inaugurada em 28 de janeiro de 2013 por Antônio Anastasia, então governador de Minas Gerais, o complexo penitenciário de Ribeirão das Neves é gerido por um consórcio entre o Estado e um grupo de empresas organizado sob a sigla GPA (Gestores Prisionais Associados). À época do seu lançamento, a Parceria Público-Privada custava a Minas Gerais R$ 2 mil mensais por interno.

“O prédio inaugurado nesta segunda dará 608 novas vagas. Além dele, mais quatro unidades, no mesmo local, estão em fase final de construção e devem ser finalizadas até o fim do ano, gerando um total de 3.040 novas vagas. As obras custaram cerca de R$ 280 milhões para a empresa GPA que venceu a licitação e em troca vai administrar o presídio pelos próximos 27 anos. O modelo é considerado uma boa saída para o Estado que não dispõe de um montante de verba como esta para construir novas unidades e tem um déficit de 10 a 15 mil vagas”, diz um trecho de matéria publicada à época no portal Terra sobre a novidade.

Em Ribeirão das Neves, o trato de monitores contratados pela GPA aos presos vem gerando problemas. Em julho desse ano, por exemplo, um homem morreu dentro da prisão por falta de atendimento médico. Em 2022, a família de um preso denunciou a morte do parente por omissão de socorro. Além disso, há uma série de denúncias de tortura supostamente praticadas no local.