BASTIDORES DO JORNALISMO

Jornal Nacional, Alexandre Garcia e o dia em que desisti da cobertura política na Globo - Por Luiz Carlos Azenha

Destacado para acompanhar Geraldo Alckmin na disputa contra a reeleição de Lula em 2006, indaguei William Bonner e Fátima Bernardes em meio aos burburinhos de que a Globo iria interferir na eleição.

Lula e Alckmin em debate na Globo em 2006.Créditos: Reprodução/TV Globo
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Minha filha, então recém-formada em jornalismo, certa vez observou, sobre a cobertura política da mídia brasileira: “É só fofoca”. Ela queria dizer que os grandes temas da Política — com pê maiúsculo — não aparecem nas páginas de jornais, como os debates sobre o pré-sal e as privatizações.

Oferecer pedaços de notícias como representantes do todo é uma das formas de manipulação: A Vale foi vendida por R$ 3,3 bi em 1997, “com ágio de 20%”, notou a Folha, mas sem noticiar que as reservas minerais da Vale valiam dezenas de vezes mais que isso.

A minha desistência da cobertura da política partidária tem data: 1º/10/2006, quando Lula foi ao segundo turno com 48,61% dos votos contra 41,64% de Geraldo Alckmin, então no PSDB.

Naquele ano, como repórter da Globo, fiz minha primeira cobertura de uma eleição presidencial. Baseado em São Paulo, minha tarefa em parte foi acompanhar o candidato Alckmin.

Ainda durante a campanha do primeiro turno, o burburinho na redação paulista da Globo começou. Não eram encontros formais, mas conversas de redação, de corredor, de cafezinho, que eventualmente envolveram duas dezenas de profissionais.

Observações pontuais de um ou outro, que sugeriam que a Globo pretendia eleger Alckmin. Nuances que certamente fugiam ao telespectador. Marco Aurélio Mello, o editor de economia do Jornal Nacional na praça, notou que os pedidos de reportagens sobre as vendas da linha branca ou sobre a construção civil haviam sumido. 

Os dois setores bombavam e as estatísticas certamente poderiam favorecer o candidato Lula.

Outro colega ficou surpreso com a presença de Alexandre Garcia, comentarista do Jornal da Globo, no programa diurno de Ana Maria Braga. As conversas entre ambos sobre política não tocavam no nome de candidatos, mas a pauta muita vezes era relacionada ao chamado “escândalo do mensalão”, que nunca houve como pagamento mensal a parlamentares em troca de votos no Congresso.

Também chamava atenção a cobertura da campanha no JN. Cada candidato tinha 90 segundos para falar sobre o tema do dia, escolhido pela Globo de acordo com o noticiário. Frequentemente, os três candidatos de oposição — Alckmin, Cristovam Buarque e Heloísa Helena — atacavam Lula de forma uníssona. Eram 270 segundos de ataque, contra 90 do petista na defensiva. 

Tudo isso era vendido como “isenção”.

Como eu viajava muito, quase sempre só ouvia o relato dos colegas e me preocupava, uma vez que a emissora já tinha um longo histórico de tentativa de interferir no resultado de eleições.

Cheguei a questionar William Bonner e Fátima Bernardes na redação da Globo do Rio: “Vamos eleger o Alckmin?”, ironizei. Recebi de volta apenas olhares de espanto.

No dia do primeiro turno, minha tarefa era acompanhar o resultado diante da casa do tucano José Serra, candidato do PSDB ao Governo de São Paulo.

A tarde modorrenta dos plantões jornalísticos foi quebrada por um colega radialista, que se aproximou e me perguntou se eu queria ouvir uma gravação: “Claro”.

Ele explicou o contexto e rodou a fita.

Era a gravação de uma conversa entre um delegado da Polícia Federal e um punhado de jornalistas combinando o vazamento das fotos do dinheiro vivo que havia sido apreendido numa tentativa de operadores do PT de comprar um dossiê contra José Serra.

Tranquilamente, o delegado dava as diretrizes: façam Photoshop aqui, se for preciso direi que as imagens foram furtadas por faxineiras, noticiem a partir de tal horário.

Fiquei espantado e pedi para ouvir de novo, enquanto fazia anotações em um papel apoiado sobre a perna.

Afinal, na antevéspera do primeiro turno o Jornal Nacional tinha dedicado uma longa reportagem de abertura às fotos do dinheiro. O repórter encarregado dela chegou a gravar na suíte do motel onde teria acontecido a apreensão. Uma mininovela eleitoral.

No sábado, véspera da eleição, as fotos do dinheiro estavam em toda parte. Por exemplo, em “capas gêmeas” da Folha de S.Paulo e d'O Estado, em que além da dinheirama aparecia uma foto de Lula de capuz no frio de São Bernardo, sugerindo que ele era um "trombadinha".

A gravação da conversa entre o delegado e os repórteres sugeria algo grave: como a apreensão acontecera há semanas, havia indícios de armação para vazar as fotos na véspera da eleição.

No próprio áudio havia uma conversa específica e preocupante: o delegado explicou como, durante a perícia, os policiais retiraram o dinheiro dos malotes e montaram “paredes de dinheiro”, como se fossem cenógrafos do escândalo.

Ele também se referiu a uma certa “foto da Globo”, que entendi ser uma daqueles em que os reais foram empilhados para fazer volume e encher a tela. Aliás, por coincidência, foi a foto que a campanha de Geraldo Alckmin usou para sua propaganda oficial do segundo turno.

Chegando em casa, naquele domingo, não tive dúvidas: fiz um texto sobre a gravação para meu blog, o Viomundo, então hospedado na Globo.com. A repercussão foi imensa. Centenas de milhares de acessos chegaram a derrubar o blog. 

No dia seguinte o chefão da Globo me ligou: “Azenha, por que você publicou aquilo?”. Expliquei que, em minha opinião, um repórter não podia se sentar sobre a notícia. Ele argumentou que minha apuração tinha sido feita enquanto repórter da emissora, no que tinha plena razão. Deveria tê-la levado a meus superiores hierárquicos.

Porém, eu já era suficientemente experiente para saber que uma gravação que envolvia um profissional d'O Globo e na qual a emissora era mencionada várias vezes certamente não estrelaria o Jornal Nacional. Também estava consciente de que a “geladeira” certamente me esperava.

Eventualmente, por conta desse e de outros episódios, fiz algo raro na Globo: pedi a rescisão antecipada do meu contrato, o que foi aceito com relutância e uma concessão. Eu não poderia trabalhar em outra emissora até que se esgotasse o prazo de meu contrato. Seriam quase dois anos de Sibéria sem salário.

Eu tinha outros projetos e estava tão farto da cobertura de política partidária que aceitei. Muito embora eu não fosse ingênuo de acreditar que os donos dos meios não fazem escolhas eleitorais, aquela experiência funcionou como um soco no estômago.

Foi naquele longínquo outubro que decidi impor uma condição a meus futuros empregadores na mídia comercial: deixem-me de fora da cobertura de política partidária e, principalmente, de eleições.

Uma coisa é ler ou ouvir dizer sobre indícios de tramas eleitorais. Outra é vivenciá-las e encarar o duro processo de manter a fé na profissão.