CRÔNICA

“Unidos do zap”, ou como seria uma escola de samba bolsonarista - Por Francisco Fernandes Ladeira

Se, divulgado o resultado, a “Unidos do zap” não se sagrar campeã, evidentemente, será pedida uma apuração “impressa e auditável”. Não sendo possível, é só aguardar 72 horas

Acadêmicos do Vigário levou à avenida palhaço gigante vestido de Bolsonaro em 2020.Créditos: Reprodução/X
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Como seria uma hipotética escola de samba bolsonarista, composta por aqueles indivíduos que passam horas nas redes sociais, sobretudo no WhatsApp, criando e compartilhando suas “próprias verdades”?

Daremos a essa hipotética agremiação o nome “Unidos do zap”. Trata-se de uma escola (de samba) “sem partido”. Ou seja, sem viés ideológico comunista. Evidentemente, não seria financiada pela Lei Rouanet, mecanismo criado pelo PT para patrocinar artistas de esquerda.

Vamos imaginar como essa escola reescreveria a história do Brasil. O enredo é: “A nossa bandeira jamais será vermelha: a história que os livros petistas do MEC não te contaram” (sim, eles acreditam que o MEC produz livros didáticos, em vez de selecioná-los entre algumas opções possíveis).

O samba contaria com um time eclético de compositores: nomes decadentes da MPB, duplas sertanejas, cantores gospel e roqueiros conservadores dos anos 80.

Na comissão de frente, a “Unidos do zap” apresentaria uma faixa, com um dos maiores mantras bolsonaristas: “E o PT, hein? E o Lula?”.

A bandeira da “Unidos do zap”, é claro, jamais seria vermelha. Seria verde, amarela e “laranja” – para combinar com o “mito” e seus “amigos” Fabrício Queiroz e Walderice Santos da Conceição (a Wal do Açaí).

Os adereços seriam joias vindas especialmente da Arábia Saudita. Seguindo a “cartilha Damares Alves”, sobre as fantasias, meninas vestem rosa e meninos vestem azul. Por falar nisso, a atual senadora receberia uma homenagem com o carro alegórico “Jesus na Goiabeira”.

De maneira geral, o desfile dessa hipotética escola conservadora seguiria os ideais do chamado “cidadão de bem”. O “abre-alas”, em defesa da tradicional família cristã brasileira, teria homenagens a aqueles indivíduos que sonegam imposto de renda, subornam funcionários públicos, fraudam concursos, possuem várias amantes e também filhos bastardos; porém se consideram “exemplos de honestidade e moralidade”.

Em sequência, o herói nacional contemporâneo “Patriota do Caminhão” seria destaque em um carro alegórico. Já os patriotas que acamparam em frente aos quartéis do exército, após a “fraude eleitoral” que retirou o mito do poder, também estariam presentes em uma das alas, bem como um pneu para cantar o hino nacional.

Para não falar que a “Unidos do zap” não tem representatividade, uma das alas homenagearia os Capitães do Mato, os verdadeiros “heróis negros”, pois prestaram importantes serviços para manter a ordem pública. Também seriam mencionados os “escravos” do “líder terrorista” Zumbi dos Palmares.

A escola relembraria a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, importante acontecimento que ajudou a livrar o Brasil do perigo comunista.

Falando nisso, o golpe de 1964 e a posterior ditadura militar seriam representados no carro alegórico que faz apologia à tortura de subversivos: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

No entanto, se engana quem acha que o Brasil não teve experiências comunistas. Nesse sentido, a “Unidos do zap” reescreveria a história, e classificaria os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma devidamente como “comunistas”, todos a serviço da “esquerda fabiana” e do Foro de São Paulo.

Os revisionismos históricos também apareceriam nas alas e carros alegóricos que negam o genocídio de indígenas, minimizam o Massacre do Carandiru (afinal de contas, “bandido bom é bandido morto”) e apontam o movimento de 8 de janeiro de 2023 como grande tentativa de restabelecer a ordem e livrar o Brasil do comunismo.

“Verdades” escondidas da população, como o “kit gay”, a “doutrinação comunista nas escolas”, “as igrejas fechadas pelo PT”, “a perseguição a cristãos”, o “banheiro unissex”, a “ideologia de gênero”, a “Terra Plana”, o “marxismo cultural”, a “cidade perdida de Ratanabá” e a “pedagogia petista de Paulo Freire”, enfim, seriam elucidadas pelo desfile da “Unidos do zap”.

Em contrapartida, grandes intelectuais - Olavo de Carvalho, Alexandre Garcia, Caio Coppolla e Rodrigo Constantino, entre outros - seriam mencionados ao longo do desfile, como exemplos de nomes que propuseram grandes linhas de análise sobre o Brasil.

Na ala “Passar a boiada na Amazônia: no governo do mito, índio não teve mais um centímetro de terra”, estão as “ilustres presenças” de grileiros, agroboys, garimpeiros e madeireiros ilegais.

Dando continuidade ao desfile, no carro alegórico “tempos bons que não voltam mais, a culpa é do PT”, seriam celebradas às épocas em que gays estavam restritos a guetos, as mulheres presas ao lar, pretos não entravam em universidades públicas e pobres não frequentavam lugares destinados às classes média e alta.

Outros destaques da escola de samba são o enorme Pato Amarelo (em torno do qual dançam passistas da classe média e suas inseparáveis panelas), o carro alegórico da operação Lava-Jato (com seus magistrados “imparciais”) e a ala do projeto “Escola Sem Partido”.

A “velha guarda” seria composta pelos conservadores “tiozões do zap”, com seus chapéus de alumínio; e a “ala das baianas” substituída pela “ala das arianas”, pois uma agremiação carnavalesca tradicional jamais poderia mencionar um estado do Nordeste, onde Lula “comprou” votos de usuários do Bolsa Família.

Já o último carro alegórico, com uma bandeira gigante dos Estados Unidos, para se bater continência, faria uma homenagem ao maior ídolo da “Unidos do zap”: o anteriormente citado “mito”.

A partir do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, a “Unidos do zap” encerraria seu desfile, contando os maiores “feitos” do “mito”, como sua luta contra o “sistema globalista”, a criação do Pix, a transposição do Rio São Francisco, o êxito da cloroquina no tratamento precoce contra o novo coronavírus e, é claro, a aplicação em larga escala dos preceitos neoliberais, pois, afinal de contas, um bolsonarista que se preze é “conservador nos costumes e liberal na economia”.

A transmissão exclusiva do desfile da “Unidos do zap” ficaria a cargo da Jovem Pan (eventualmente, a Rede Record também poderia adquirir os direitos de imagem).

Por outro lado, caso algum profissional comunista da extrema imprensa (seja da “Globo Lixo” ou da “Foice de São Paulo”) for cobrir a apresentação da escola, correrá sério risco de ser agredido física e verbalmente (como foi comum nos tempos da “gripezinha do vírus chinês”).

Se, divulgado o resultado, a “Unidos do zap” não se sagrar campeã, evidentemente, será pedida uma apuração “impressa e auditável”. Não sendo possível, é só aguardar setenta e duas horas, fazendo arminha com a mão, que a notícia positiva chegará. Basta acreditar!

No entanto, é importante frisar que o exercício mental aqui proposto só pode ser restrito ao âmbito hipotético mesmo. Os próprios bolsonaristas, de maneira geral, dificilmente fundariam uma escola de samba (coisa de “preto”, “favelado” e “gay”), pois odeiam carnaval (considerado “uma festa promíscua”).

Acima de tudo, como todos os ressentidos, o que estes setores conservadores odeiam, de fato, é qualquer tipo de manifestação de caráter popular, alegria e exaltação à vida.

Não por acaso, Mussolini definiu o fascismo como “a sociedade da vida dura”. Ou seja, o oposto do carnaval.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.